quarta-feira, junho 27, 2007

Vencedor Concurso CAIS Junho

Aqui segue o texto cencedor do Cais Letras publicado na edição última edição da revista Cais. É o texto de uma aluna do curso de Oficina do Conto que assina com o pseudónimo Maria de São Mamede. Parabéns!

Maldonado
Maldonado queria ser escritor. Comprou uma máquina de escrever na Feira da Ladra, e com um formigueiro e brilhar-lhe nos olhos, decorou a velha sala tal qual um covil artístico de escritor sofredor. Não podendo dar largas à imaginação, surripiou uma velha mesa de café da arrecadação da casa da mãe e colocou-a no vão da janela, juntou-lhe uma cadeira de escola e de jogar às cadeiras. Arrancou as cortinas amorosamente feitas pelas mãos de fada maternas, despiu a sala de qualquer distracção e desenroscou duas lâmpadas ao candelabro de três de tecto. Comprou uma garrafa de whisky e em cima da mesa, deixou a máquina, papel e um cinzeiro.
Já a noite começara, do alto dos céus, escorreu-lhe uma ideia e Maldonado correu para a máquina. De pijama a adormecer em frente à televisão ligada, deu um salto da cama, passou pela cozinha para levar um copo, pequeno, de fundo grosso, iguais aos das tabernas. Sentou-se, estalou os dedos, acendeu um cigarro, encheu o copo e esperou. Pensativo, esperando a ideia, bebeu de um trago o copo. Encheu-o novamente. Esperava pronto para entrar em acção, tal qual corredor agachado na linha de partida, concentrado em ouvir o tiro de largada, reunindo toda a sua força, técnica e habilidade de corredor. Fumegou duas vezes o cigarro e ía começar a escrever, mas as mãos, hesitantes, pararam a meio caminho. Não, a palavra perdera-se a meio caminho. Teria de a voltar a encontrar. Levou o copo à boca, deu um gole no whisky e forçava-se por se concentrar outra vez. Deixando cair as mãos sobre as pernas, começou a coça-las. Fixando os olhos pela janela, olhava o prédio em frente que dormia. Nenhuma luz em nenhuma janela, meio iluminado pelo lampião da rua. As mãos aproximavam-se do teclado e, era agora, era agora que Maldonado começava a escrever o seu romance. Mas enganava-se, as mãos só atalhavam caminho até ás pernas para satisfazer uma comichão momentânea. As pernas e pés, irrequietas, não deixavam que as mãos parassem de esfregar e coçar. Incomodado, Maldonado levantou-se, acendeu outro cigarro e esvaziou o copo e deu uma volta pela sala de mãos nos bolsos, aproveitando para coçar as virilhas e a parte de cima das pernas. Pensava. Tinha a frase ali mesmo à sua frente, mas ela fugia antes que a pudesse escrever. Rápida, fugia-lhe. Tentava recordar-se da ideia que o fizera saltar da cama. Daquele ímpeto, daquela luz. E sentou-se outra vez, frente à sua máquina de escrever a história de que não se lembrava o princípio.
Na manhã seguinte, estava mal disposto e pesado. Meia garrafa bebida, quase um maço de tabaco mal ardido e só duas folhas, no chão, amarrotadas. Nenhuma escrita. A proporção era impensável para um escritor que se prezasse. Toda s sua motivação desaparecera. Passara uma noite em branco, o seu corpo rosava e chagava numa urticária desmedida e nem uma linha escrita. Assim vencido e derrotado decidiu reunir toda a sua alma despedaçada e abalançar-se noutra tentativa.
O problema estava na máquina. Não estava habituado a escrever à máquina e esse elemento estranho ao seu génio, intimidava-o, não deixava que libertasse artisticamente. Rebuscou um punhado de lápis, um afiador e outra vez, se sentou à mesa de café, agora sem a máquina e ajeitou as folhas de papel em branco. As mãos já não lhe chegavam, com a ponta do lápis coçava as pernas, os pés, daqui a nada, as costas.
E aquilo durou mais um par de dias. A única ligação que Maldonado sentia com a escrita era aquela intensa urticária que sentia ao sentar-se frente à folha de papel. Não conseguia impor a sua vontade ao seu génio. Se calhar ele estava a dar-lhe um sinal que aquela não fosse a melhor maneira de exprimir a sua arte. Talvez fosse mais o cheiro do amor, da maresia ou das ondas a afagarem a praia. Das noites claras de luar, de arrebatamentos de alma.
Ocupado nestas deambulações, decidiu aceitar o convite da sua mãe para o familiar “Empadão à Joaquina”, que ela fazia como ninguém e Maldonado precisava do colo da mãe e do empadão. Já ia a meio da refeição, quando o garfo parou a meio caminho da boca quando a mãe o informou que a mesa e cadeira que o filho tinha levado dias antes não eram de confiança: estavam completamente minados pelo caruncho. Estavam a desfazer-se. Até se admirava como ele ainda não tinha caído ao chão, ao sentar-se na cadeira. Antes do garfo entrar na boca, Maldonado decidira ser poeta.

Maria de São Mamede

Sem comentários: