segunda-feira, agosto 27, 2007

Texto Vencedor CAIS Agosto e novo tema

Segue o texto vencedor da última edição da CAIS Letras.
É de um aluno meu que muito estimo e que assina com as iniciais "msp".
Aproveito para dizer que o próximo tema a ser entregue até dia 16 de Setembro é "O regresso às aulas". Mas pode ser também o primeiro dia de aulas ou qualquer outra ideia que gire em torno das aulas, da escola, do ensino, da aprendizagem...

Boa leitura e boas escritas!

O tecelão de futuros

Sonhava com as férias. Queria ir de férias. Tinha de ir de férias.

Andava irritado, impaciente, de mal com a vida. E as férias pareciam-lhe – e sempre tinham sido, até aí – um retiro de calma e de beatitude.

Aproveitava-as para, serena mas diligentemente, restaurar a pilha de destroços em que, ao longo do ano, o ramerrão de um quotidiano insonso o transformava.

Era um trabalho a um tempo árduo e delicado: rendilhava forças com agulhas de projectos e de sonhos, urdia amanhãs e dias seguintes em teares de desejos e de temperança, forjava planos, ideava soluções.

Cumpria-o, porém, com inefável prazer: de alguma maneira, sentia-se um quase deus a pôr e a dispor de um futuro próximo que, estava certo – pelo menos naqueles momentos – correria conforme os seus planos.

Não obstante, nunca deixara de fazer – longe disso – o que é costume fazer em férias.

Considerava ele que as férias começavam, oficialmente, no momento em que, quase com raiva, enterrava o relógio na gaveta da cómoda, libertando-se do jugo dos horários.

Depois, deixava os dias transcorrerem, preenchendo-os com o que lhe ditasse a imaginação e a bolsa permitisse: a leitura, a praia, as refeições de peixe fresco grelhado, o cinema, as corridas matinais, um ou dois fins-de-semana no Algarve, os jantares com os amigos que dificilmente via durante o resto do ano (e que milagrosamente não estivessem ausentes), a esplanada ao fim do dia ou depois de jantar, a pesca (só em férias se lhe conseguia dedicar), uma ou outra exposição ou peça de teatro, as saídas nocturnas para os bares e discotecas da moda, os pequenos-almoços copiosos e demorados e o descanso (ah! abençoadas sestas!) sucediam-se em combinações diversas que ele delineava equilibradamente e sem esforço, preferindo, contudo, acreditar serem obra do mais puro dos acasos.

Num ou noutro ano – nos de finanças mais pródigas – conseguia fazer uma viagem para fora do país – e, ironia!, lá tinha de voltar a sujeitar-se a horários (assumia esta vicissitude como um contratempo menor...).

Na verdade, porém, o melhor das suas férias era a possibilidade de estar consigo, de voltar a aproximar-se de si próprio. E aproveitava todos os momentos em que não tinha outras solicitações para o fazer. Num ensimesmamento quase monacal, vogava pelos mares, ora calmos, ora procelosos, do seu mundo, em demanda de um eu novo. Primeiro, o balanço: onze meses de vida sensaborona, sem acontecimentos de relevo. Depois, a recolha dos despojos susceptíveis de serem recuperados. Por último, a fase de que mais gostava: a reconstrução. E os que o viam nesses momentos de recolhimento, completamente alheado do que à sua volta se passava, os olhos fitos em nada, tinham opiniões idênticas: – É maluco! Ou: – É um lunático! Ele nem dava por eles. E continuava a sua viagem, tormentosa, muitas vezes, recuperando o que de si parecia aproveitável e reedificando-se como homem.

Por norma, no final das férias, sentia-se como novo, capaz de enfrentar mais um Outono, a chuva, os dias mais curtos, o frio, outro Natal, as esperanças no ano a estrear (que acabavam, invariavelmente, por se esgotar quase de imediato), o aperto financeiro do mês de Janeiro, os primeiros dias de Primavera e o retorno inexorável e violento do anseio pela chegada das férias.

Este ano, porém, algo de diferente se estava a passar. O ano tinha sido como os outros: deprimente, espesso, pesado. Era ele que estava diferente.

O último dia de trabalho chegou, finalmente.

No metropolitano, a ameaça de sorriso que lhe amaciava a expressão era quase insultuosa para com os transeuntes.

Ao chegar a casa, cumpriu o ritual, antes de fazer outra qualquer coisa: com um prazer quase impossível, tirou o relógio do pulso e remeteu-o para a escuridão da gaveta da cómoda.

Depois, descalçou os sapatos e, ainda vestido, estirou-se no sofá; e aí, já oficialmente de férias, tomou a decisão mais importante dos últimos anos: ia fazer férias de si mesmo!

msp

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