terça-feira, dezembro 29, 2009

Escadas...

Eram ao todo dez degraus.
Bem contados, organizavam-se naquele canto de rua numa forma de cimento bem miudinha. Um corrimão de ferro sujo contornava-os. Medindo-os de uma ponta à outra, arrastando até ao fim do percurso a ideia de uma escada. De um sobe e desce mastigado pelo dia-a-dia do bairro. Subidores e descidores cansados de subir e descer pequenos rectângulos de cimento duro, agarrados uns aos outros de forma a fazerem sentido.
O primeiro degrau que sobe e desce, era o mais gasto de todos, esfolado na epiderme de quase todas as suas pedras, ou não fossem os subidores que hesitavam no caminho escolhido. Pois mesmo que recuassem, acabavam sempre por pisar o primeiro degrau. O segundo degrau que sobe e desce, decorava-se diariamente de pastilhas elásticas descoloradas, umas deserdadas por donos enjoados pela brisa matinal, outras vindas da traquinice de soldados da infância. O terceiro degrau que sobe e desce, bem feminino, aglomerava pequenas ervas selvagens que rompiam as veias de cimento sem olhar a meios. Num dos cantos, um grupo de papoilas ameaçava colorir. O quarto degrau que sobe e desce, era um pouco pestilento, abarbatando-se de beatas incompreendidas, vindas de cigarros elegantes atirados lá de cima do décimo degrau. O quinto degrau que sobe e desce, um pouco peneirento por marcar o meio do caminho, jogava à bola com canudinhos de bilhetes de autocarro e carcaças de talões de multibanco. O sexto degrau que sobe e desce, muito paciente, geria entre a direita e a esquerda os dejectos de animais, aliviados pelos bichanos de rua. O sétimo degrau que sobe e desce, um hipocondríaco de gema, tentava desviar-se das solas de sapato que se raspavam contra si, vítimas da distracção com os dejectos do degrau anterior. O oitavo degrau que sobe e desce, enjoava de tão alto que estava. Para além de sandes meio trincadas, dali rolavam latas de refrigerantes sorvidos, que faziam alvo a quem circulasse lá em baixo no primeiro degrau. O nono degrau que sobe e desce, o mais sentimental de todos, dava colo a um formigueiro e a uma família de minhocas. De quando em quando lá ajudava uma formiga a subir, exausta pela migalha da sandes do degrau anterior. O décimo e último degrau que sobe e desce, talvez o mais responsável de toda a escada. Polícia sinaleiro de todos os degraus antes de si:
Ao nono degrau, observava o trabalho das formigas, considerando que elas subiam mais do que desciam.
Ao oitavo degrau, perguntava qual era a sandes do dia.
Ao sétimo degrau, apertava o nariz e desejava-lhe boa sorte.
Ao sexto degrau, ladrava e miava afugentando os poluidores de quatro patas.
Ao quinto degrau, anulava os golos em fora de jogo marcados pelos talões de multibanco.
Ao quarto degrau, soprava furiosamente os cigarros mal apagados.
Ao terceiro degrau, apontava a mangueira do jardim municipal, garantindo a rega de toda a vegetação selvagem ali presente.
Ao segundo degrau, memorizava os traquinas das pastilhas elásticas e recebia-os com uma simpática rasteira.
Ao primeiro degrau, berrava para os indecisos alçarem da pata e começarem a subir.
Enfim, um sobe e desce desmedido, todos os dias, naquele bairro, naquela escada.


Patrícia Paisana Martins

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