Caso não tenham oportunidade de comprar a CAIS deste mês, aqui vai o texto vencedor publicado na secção CAIS Letras.
A Rendição das Flores Brancas
O senhor doutor dá largas passadas pelos corredores do hospital. Corre com a pasta preta encaixada debaixo do braço, ignorando os chamamentos vindos dos gabinetes e afastando com a mão as enfermeiras inquietas que tentam em vão um minuto do seu tempo. Trata-se de um homem de meia-idade, inquieto e transtornado, com o olhar consciente do importante caso que tem em mãos. O cabelo esvoaçante, os óculos tortos e o bigode comprido acentuam a rigidez de uma cara, que apesar de severa, revela a doçura de um homem comprometido com a humanidade e com o mundo artístico. Decorre o dia 30 de Novembro 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses e o senhor doutor, ao tremer de nervosismo e angústia, teme serem estes os últimos momentos da sua vida. Uma enfermeira mais velha, pachorrentamente sentada atrás de uma secretária, faz-lhe sinal para o pôr ao corrente da situação:
- O seu paciente não está nada famoso, senhor doutor – folheando um grande caderno de capa preta – hoje de manhã não comeu nada e não está a reagir bem ao tratamento. Está a parecer-me que pouco podemos fazer por ele.
O médico retira os óculos, esfregando os olhos com ambas as mãos. Fá-lo com um misto de cansaço e desespero.
- Vou observá-lo imediatamente em particular. Não quero crer que vamos mesmo perdê-lo – pregando um pequeno soco impotente na secretária – exijo não ser incomodado.
- Como queira, senhor doutor. Esteja à sua vontade. A velha enfermeira observa-o a entrar no quarto e a trancar a porta.
No quarto quase vazio, as paredes nuas de um branco infinito, um homem só, jaz numa cama de ferro fria e indigna. O senhor doutor aproxima-se do homem e, chegando-se à cabeceira do leito, sussurra muito baixinho:
- Fernando... Estás acordado? – observando com mágoa a debilidade do doente.
- E alguma vez o estive? – responde com dificuldade. Dá-me os óculos, amigo Reis. Vieste de tão longe para tratar de mim... Permite-me que te veja melhor, por favor. O Álvaro, o Bernardo e o Alberto chegaram há pouco. Diz para entrarem.
- O que estão eles a fazer aqui? Não é boa ideia estarmos todos juntos no mesmo local. Alguém pode perceber e fazer a associação.
O senhor doutor agarra o braço do paciente e afirma:
– Todos somos tu, lembras-te? Foi o compromisso que tomámos, juntos seremos Pessoa para sempre.
- Ricardo, é esta a minha vontade. Por favor manda-os entrar – pede o doente – neste momento, pouco me importa a imortalidade se é precisamente o oposto dela que me assoma à porta. Manda-os entrar.
Fernando coloca a mão no ombro do médico. O doutor Ricardo Reis, tentando esconder o ar de desalento, caminha até à porta e cumpre o desejo do amigo.
Os três homens entram no quarto e ladeiam a cama de Fernando Pessoa. Cada um segura na mão uma flor branca que pousa prontamente em cima dos lençóis gélidos do hospital. O empalidecido poeta sorri de contentamento e encosta a cabeça na almofada, gozando o seu regozijo numa viagem interior. Alberto Caeiro retira um lenço de linho bordado do bolso e limpa a testa gotejada de suor. O doutor Ricardo Reis mantém-se junto à porta, observando as movimentações das enfermeiras, temendo a curiosidade alheia.
- Tenho verdadeiros amigos aqui e lá, isso é o mais reconfortante. Bem sei que já esperas por mim, fiel Sá Carneiro... – Fernando Pessoa entrega os óculos a Bernardo Soares, desejando descansar os olhos – talentosos e grandiosos amigos, que grande vida construímos juntos. Que extensa obra deixaremos para que nos lembrem para sempre. Obrigado pela inspiração constante na batalha diária pela sobrevivência, a triste e forçada aceitação da consciência humana.
A jovem enfermeira tenta acalmar Fernando Pessoa no pico dos seus delírios, o seu olhar preocupado deixa escapar duas lágrimas.
- Mas só estamos nós os dois neste quarto, senhor Pessoa – ajeitando a almofada com doçura – tenha calma e repouse.
O poeta balbucia qualquer coisa que a rapariga não entende. A jovem debruça-se sobre ele e, com carinho e gentileza, faz-lhe o pedido:
- Como disse, senhor Pessoa? Não consegui perceber o que disse ainda agora.
Pessoa levanta um pouco a voz e elucida a jovem, como que declamando:
- I know not what tomorrow will bring...
André Oliveira
Curso de Escrita Criativa de 11 de Outubro de 2006 a 14 de Fevereiro de 2007
Há 15 anos
3 comentários:
Parabéns! Está bem bom! Só tenho algumas dúvidas em relação à frase final: se devia, ou não, ser traduzida em nota de rodapé.
Saudações.
Joaquim Duarte
Oh... Está lindíssimo... Tenho pena de não poder comprar a Cais (estou a morar em Londres de momento), mas estou mt contente por ter descoberto este seu blog! Sou ex-aluna da NextArt e recebi a newsletter deles onde falava deste texto ;) Um must!
Irei espreitar o seu blog com mais frequência!
O teu texto é o espelho de todo o poder criativo que vai nessa " cabeçinha".
Este texto e todos os outros.
Conheço muitos deles porque tenho a sorte de ser tua Mãe.
Aprecio-os de verdade não porque sou tua Mãe, mas porque sim.
Parabéns, André.
Tás lá.
Ana
Enviar um comentário