terça-feira, julho 03, 2007

Texto Vencedor CAIS Letras Julho

Ainda se lembram dos Santos? Pois aqui vai o texto vencedor!
É do Tiago Simões que terminou o curso de Escrita Criativa em Fevereiro e cujo blog está nos links de blogs de alunos. Parabéns, Tiago! É bom saber que "da poltrona", continuas a escrever...

"O sagrado e o profano"
Pedro e João são gémeos: o primeiro liga-se mais ao sagrado, o segundo é incapaz de escapar ao profano. Sempre foram assim estes gémeos falsos: Pedro tem as mãos finas, é alto e esguio, como um candeeiro público dos antigos, verde velho, e tem o cabelo em tons aloirados, como a mãe. João é moreno, grande, menos alto mas mais forte, com mãos que parecem autênticos troncos de árvore, tal como as pernas, a fazer lembrar o pai.
A única coisa que acedem a fazer juntos é sair para festejar o Santo António, em Lisboa. Não vão à procura de casamento, pois disso têm andado a fugir quase toda a vida, vão apenas à procura da melhor paragem para encher a barriga e a alma com bifanas e imperiais, caldo verde e pães com chouriço.
Da infância, ficou-lhes o gosto por versejar, influenciados inadvertidamente pelos pais, que insistiam em comprar manjericos pela altura dos Santos Populares, sempre carregados de quadras simples e de fácil leitura.
Alérgicos ao cheiro da planta afim do manjericão, só a suportavam ter em casa com a criação daquele passatempo que consistia em inventar novas quadras, com rimas mais ou menos contextualizadas, consoante a inspiração. Ainda hoje mantêm essa tradição, praticando-a agora à desgarrada, entre as ruas, becos e vielas de Lisboa. Começa o João, na zona baixa da cidade:
Pára o metro no Martim Moniz
Estação do Socorro foi outrora
O Pedro jamais sabe o que diz
Mas não o mandem já embora.
Pedro faz um ar furioso, bem diferente das gargalhadas que os amigos dão, e logo mostra o dedo em riste a João. Continuam o percurso até que, perto da catedral de Lisboa, dispara:
Não te disse nada em São Miguel
Por mero respeito ao nobre santo
Mas agora que a Sé aparece fiel
Peço que te escondas a um canto.
Nova gargalhada no seio do grupo, que cruzava, nestas ocasiões, os amigos de ambos, que se iam divertindo e acabavam por adorar toda aquela saudável picardia de irmãos. Percorreram mais uns metros e João ripostou; era a sua vez:
Nunca mais chegávamos a Alfama
Para estes moradores poder honrar
E dizer-te que quem fizer boa cama
Nos seus lençóis se poderá deitar.
Um dos casalinhos do grupo, composto por Joana e Frederico, ela colega de turma de João, ele colega de turma de Pedro, soltaram risos maliciosos e adolescentes ao ouvirem as palavras cama e lençóis, pedindo de seguida uma resposta à altura. Pedro fez um gesto com a mão, esticando-a, perpendicular ao seu braço direito, como que a pedir que aguardassem. Respirou fundo, meditou três ou quatro segundos e, pleno de inspiração, lançou-se em contra-ataque:
Caro irmão, daqui agradeço o teu conselho
E prometo não te levar ao Coração de Jesus
Mas se optares por rumar a Santos-o-Velho
Eu, Pedro, aqui asseguro: enfiaste o capuz!
Os irmãos apertaram então as mãos, soltaram uma sonora gargalhada, deram um forte abraço como se aquela peça tivesse corrido pelo melhor e, diante do grupo, acordaram levar, pela primeira vez desde que se conhecem, dois manjericos para os pais. Comprá-los-iam apenas no fim da noite, que terminaria algures no Bairro Alto, segundo as previsões que fizeram naquele instante. E assim veio a suceder.
Depois de andarem cerca de dez quilómetros a pé, de comerem e beberem de tudo um pouco, trabalhando tanto para o aumento dos gémeos (os das pernas!) como do colesterol, acabaram a noite no Bairro da Bica, encostados ao elevador com o seu nome, com a cabeça tombada no seu amarelo enferrujado, cada um com um manjerico na mão, para oferecer aos pais. Rezavam o seguinte:
Aqui nasci e sou gente de bem
Tenho orgulho em ser da Bica
Ganhei de meu pai e minha mãe
A força do bairro e a sua genica!
E ainda...
Conheci meu marido no Santo António
Ao fundo da rua da Bica de Duarte Belo
Chamei-lhe tudo, desde anjo a demónio
Mas ainda tenho por ele o maior desvelo!


Tiago Simões

1 comentário:

Tiago Simões disse...

Fantástico! Muito obrigado, fiquei bastante contente! E continuarei a escrever, claro, "da poltrona"!