sexta-feira, setembro 28, 2007

Próximo tema CAIS LETRAS e texto vencedor Setembro

Quem frequentou o curso aos Sábados o ano passado, lembra-se com certeza do "verde-ratazana". Pois, foi a sua autora, a Patrícia Paisana Martins que ganhou a edição do última texto da CAIS Letras que saírá em breve e que aqui publico em "ante-estreia". Antes que se deixem enebriar pelas sensações do texto que se segue, aproveito para anunciar o próximo tema.
"Quentes e boas" diz a CAIS. Serão as castanhas, claro, mas também tudo aquilo que nos chega com o Outonono. A data limite para o envio do texto é até dia 14 de Outubro. Está lançado o mote!


"Acabaram as férias"
O balde, a pá e as braçadeiras foram arrastadas à força para o armário bafiento do sótão, e o suculento aroma a plástico do meu estojo novinho em folha, já se entornava pela mochila sorridente por se estrear. Rectangular e colorida a vermelho cor de sangue de mosquito, espreitava-lhe pelas cinco ou seis bolsas de tamanhos diferentes. Esconderijos inquietantes pelos quais palpitava perder e depois reencontrar preciosas borrachas meio roídas, quadradinhos de caramelo de fruta derretidos, magrinhos pincéis quase carecas, bolas de futebol de papel quadriculado, bonés coloridos dobrados em quatro partes, berlindes bolachudos e brilhantes como a água da piscina, pauzinhos de gelado outrora lambuzados com a alegria maior do mundo, botões bebé arrancados na fantasia do recreio e metades de bolachinhas esquecidas pela aventura diária na escola. E o regresso é já amanhã.
Será que este ano tenho de dizer o que quero ser? É que não quero ser sério nem sisudo como o professor Raul do ano passado, que nunca lhe vi os dentes, nem um pequeno movimento que pudesse denunciar uma amostra de sorriso. Também não quero ser alguém que grite quando deve sussurrar, e que fale baixinho quando se deve fazer ouvir, como a tia Arminda, que lá na casa da terra me acorda com um berro matinal estendendo os bons dias a toda aldeia. Não quero ser gordinho e rechonchudo, embrulhado num fato e gravata como o vizinho da frente, que chega todos os dias do trabalho com ar de secretária. Quero sim ser voltar do trabalho com roupa fofinha e agradável, como este pijama que tenho agora vestido. Não quero ser como o bigode do meu avô, farfalhudo e afiado, que me pica sempre que deposita um beijo na minha testa. Nem como o tronco do eucalipto da floresta ao pé da minha casa, que foi cortado em fatias como o bolo do meu aniversário. Não quero ser alto como os arranha-céus que vejo nos filmes, nem baixinho como os gnomos de um vale encantado dos meus livros, muito menos ser cara ou coroa como as moedas antigas da colecção do meu pai, ou escolher entre ser amargo como o remédio para a tosse ou doce como o gelado. Não quero nem pensar ser artista do pincel ou das notas musicais, nem mesmo campeão da corrida ou da bola. Muitas vezes, imagino que quando for grande não quero ser nem redondo nem quadrado como as formas geométricas que a professora Lupa ensinou; e também não quero ser sozinho como a vizinha viúva do andar de cima, nem apanhado pela multidão como o meu jogador de futebol preferido. Há manhãs, que quando for grande não quero ser mar alto como as ondas do aquário que enjoam o meu peixinho vermelho, nem rio calmo como o som da viola do meu primo Joaquim que adormece a vizinhança. Em algumas tardes quando for grande não quero ser nem quadriculado nem pautado, como as folhas do meu caderno diário de capa grossa; nem quero ser médico dos doentes como as mezinhas da minha avó.
A meio da noite tenho a certeza que quando for grande não quero ser magrinho e pálido como os fantasmas do meu quarto, nem mesmo ser tão iluminado como a meia-lua de bolacha que me espreita à janela todas as noites. E quando acordo de madrugada para beber um copo de leite porque não consigo dormir, dou por mim a pensar que quando for grande não quero vestir preto claro nem preto escuro, como a escuridão do corredor que vai do meu quarto à cozinha e que me faz correr a sete pés das formas unicelulares e extraterrestres que por lá espreitam.
Quando penso na minha mãe e no meu pai, sinto que quando for grande não quero ser aborrecido e apitar no trânsito ao carrinho da frente, muito menos ser pouco imaginativo e adormecer enterrado no sofá até à hora do jantar. Não quero ter os longos canudos de cabelo da minha mãe, tão louros como as batatas fritas que como no bitoque. Não quero cortar o cabelo em forma de concha e arrepender-me durante alguns meses, como fez o meu pai no barbeiro Antunes. Não quero deitar fumo como aquele que vem do cigarro que fumou o meu irmão, nem cheirar mal da boca como o tom esverdeado da dentadura do carteiro que vai lá a casa todos os dias.
Quando estou na escola e é hora do intervalo não quero ser mais nada do que aquilo que sou naquele momento.
Quando for grande não quero ser uma data de coisas.
Quando for grande não quero ser um adulto que não queira ser nada.

Patrícia Paisana Martins

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