segunda-feira, outubro 15, 2007

Segundo convite do EscreverEscrever para escrever...

Encostado na janela, num misto de tristeza e angústia, deixou a vida por uns momentos. Lá fora, um vento discreto percorria faces que desconhecia mas que alguém já tinha visto. Passeios sujos de viagens mal percorridas, cigarros esquecidos no meio de uma pressa inconsciente, jornais abandonados onde outrora eram notícia, odores cruzados e portas fechadas que se esperavam abrir. Sente o vidro à sua frente, que o protege do mundo, que o afasta de crueldades e de mentiras que não sabe ignorar, de paixões e prazeres que não consegue apreciar, de escolhas que urgem em serem feitas mas que a apatia impediu de tomar. O vazio de uma manhã empurrou-o para lá daquela janela, fechado contempla incessantemente. Disse-lhe que era difícil aquele momento. Que não tinha palavras para confortar fosse o que fosse. O silêncio foi o único momento que pude oferecer-nos. A dor foi para além de qualquer parte do seu (nosso) corpo, profunda e dilacerante, espelhou-se nas palavras e nos gestos, feriu memórias e envelheceu pensamentos recentes. Perdeu-se o sentido. Havia um fio que nos conduzia, às vezes em percursos paralelos, outras em extremos opostos, porque a incompreensão falou mais alto. Porque o significado que atribuíamos ao mundo, à vida, às coisas mais mundanas, eram diferentes e nem um nem outro se esforçou por perceber.

Puxo um isqueiro do bolso apertado de um casaco desgastado pelos anos que passaram sem saber, acendo mais um cigarro e perco-me no fumo baço que se desenha no ar. Vivo não há muitos anos mas sinto velho o meu passado. Recordo quando ele se encontrava naquela mesma janela, embaciada pelo frio que tinha assentado naquela tarde, sorria profundamente porque finalmente tinha conseguido escrever. Chamou-lhe Tela perdida. Escrevia sempre o título no final de cada poema. Creio que foi o que mais lhe fez tremer a mão, pela ansiedade e sede que sentia quando as palavras surgiam, expondo sentimentos e defendendo posições que só ele percebia. Escreveu-o apenas numa noite, sem saber naquela noite. E ao contrário dos outros, este nunca foi dado a ler.

Ele continua à janela, mergulhado numa melancolia que muitos dos seus amigos contavam que lhe era muito próprio, tempos de pausa que parecia dar a tudo o que o rodeava, sem satisfações partia sem rumo, de corpo presente e acompanhado pelos amigos, mas na realidade sozinho. O seu melhor amigo telefonou ontem, e entre poucas palavras e largos silêncios, quis saber como eu estava. Assegurei-o de que estava bem só para que o telefonema terminasse logo ali. Assim foi, depois de me ter dito que ele não atendia o telefone nem abria a porta a ninguém. Respondi-lhe em tom de despedida que ele estava à janela encurralado no seu mundo. A raiva que sinto por ele despedaça-me em pouco mais do que um mísero corpo à deriva daquilo que o futuro não reservou. Porque eu sinto-me apenas isso. Um corpo, uma matéria que provavelmente não terá mais uso.

Uma dor nos dedos faz-me soar um leve grito seco, mais um cigarro ardido em vão. Talvez deixe de fumar. Olhei para o meu primeiro cigarro tinha dezasseis anos, ele tinha acabado de nascer. Eu tinha fugido de casa porque a minha mãe lembrou-se de dizer à frente dos meus colegas que a razão das minhas notas serem baixas era por perder tempos infinitos a escrevinhar textos distorcidos, que me ocupavam a mente inutilmente. Irreconhecíveis dizia ela. De grafia fina e demasiado tremida ocupava capas de cadernos velhos, aproveitava cartões das embalagens de cereais, guardanapos usados caídos no escuro e peganhento chão da cozinha, e até na parede das traseiras do meu prédio, quando frases saíam abruptamente e a minha mão se recusava a parar. Não podia escrever mais tarde, senão perderia palavras irrecuperáveis. Assim, quando ouvi a minha mãe a dizer aquilo senti-me pequeno e fraco. Os olhos punitivos e cortantes dos meus colegas arrastaram-me para uma correria desenfreada, sem sentido corri sem conta até tropeçar num atacador distraído, e estatelar-me, já cá fora, mesmo no meio da estrada. Um ténue fio ensanguentado descia pela minha testa. As mãos esfoladas e sujas latejavam de uma dor complacente. Sento-me na berma do passeio por onde ninguém parece querer passar. Furioso e destroçado achava que tudo o que pudesse fazer poderia ser justificado pela traição da minha mãe. O que passaria na cabeça dos meus colegas naquela altura? Puxei da mochila que trazia às costas e numa bolsa lá no fundo tirei um cigarro meio amachucado que um deles me tinha estendido durante um dos intervalos da manhã. Levantei-me dorido, e pedi lume a um homem já de idade que fumava elegantemente encostado à montra de uma loja. O primeiro bafo já tinha ido. Não tossi assim tanto como os outros diziam. Como olhá-los outra vez? Depois daquilo nunca mais. Tinha ido visitar a minha mãe ao hospital com eles, o meu único irmão nascera. Até gostara da ideia, o nascimento de mais uma vida que iria partir do nada para o tudo que pudesse alcançar, era uma fonte inesgotável de sentimentos e percepções que eu não resistia em traduzir por pequenos textos ou humildes poemas corridos, sem versos e sem pontuação. Limitava-me a sentir. O meu irmão era rosadinho, de pequenos olhos brilhantes que de vez enquanto pareciam sorrir para mim.

Já há muito tempo que ele não olha para mim. Nem mesmo naquela noite. Neste momento, sentindo-o ainda na sua janela, desejava que ele um dia voltasse a olhar para mim. Podia tê-lo feito naquela noite, mesmo diluído numa dor profunda, tal como eu, ele podia ter olhado para mim uma única vez para que eu pudesse ver nele aquele mesmo brilho e aquele mesmo sorriso e saber que a vida ainda corria dentro dele. Fui ter com ele ao final da noite, onde a porta se entreabriu para quase duas horas engolidas por um silêncio ensurdecedor. Parecia não termos palavras que quiséssemos partilhar um com outro, como se tudo já tivesse sido dito ao longo dos vinte anos que vivemos sob o mesmo tecto com a mulher que nos deu vida.
A nossa mãe.
Morta há algumas horas, por uma doença que nunca lhe perdoou.

Patrícia Paisana Martins

Sem comentários: