
«Minha Gina: vou hoje começar um dirário para ti. Já mais de uma vez tentei escrever um diário, mas fatalmente, ao fim de duas ou três sessões, sentia-me fatigado. A razão vinha de eu pensar em publicá-lo o que o tornava artificial e estreito. Assim, visto que o diário é só para ti, não vou seleccionar o que hei-de dizer-te nem preocupar-me demasiado com literatices. Não quero porém que ele fique chato, vazio de interesse, tanto mais que desejo aproveitá-lo como treino para outras empresas literárias. Tu sabes que um diário é sempre falso. Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos, porque o pensar é já um desnudar-se uma pessoa perante si mesma. Vê tu, por exemplo: não nos desculpamos a nós próprios dos nossos defeitos? Sabemos bem que os defeitos existem, são bem reais, puseram a marca nítida de um ferro em brasa. E no entanto procuramos intrujar-nos. Como hei-de eu ser verdadeiro, inteiramente verdadeiro no que te escrevo? (...)?»
Vergíligo Ferreira
In Diário Inédito (Bertrand)
Colecção: Obras de Vergílio Ferreira
FONTE: Revista Ler - Livros & Leitores, Junho de 2008, pp. 23
Sinopse
Publicação de manuscritos do Espólio de Vergílio Ferreira, correspondentes a um diário que escreveu, com algumas interrupções, entre 1944 e 1949. Este diário foi escrito por V.F. entre os 26 e os 32 anos e documenta uma fase da evolução do jovem romancista na época em que começou a interessar-se pela leitura de obras de filósofos (entre os quais avulta Sartre) e em que escreveu o romance Mudança que, como é sabido, representou um marco de viragem na evolução da sua obra. Contém reflexões literárias e filosóficas, comentários de leituras e de episódios do dia-a-dia, evidenciando já algumas características que virão, muitos anos mais tarde, a expandir-se em Conta-Corrente.
FONTE: Webboom
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