quarta-feira, junho 18, 2008

A MINHA PALAVRA FAVORITA: "Cântaro" de Rosa Lobato Faria


«Convoquei as palavras preferidas. Umas, como caminho, vieram ajuizadamente. Esta trouxe-me flores e pegadas de sandálias infantis. Lua veio sonhadora, deslizando entre nuvens, e mar falou alto, vestido de espuma, com mãos transparentes e cabelos molhados. Estrela caiu no abismo do meu peito, não sem deixar um perceptível rasto de luz. (...)Nenúfar quase me convenceu a escolhê-la e pedi-lhe que passasse para o lado do meu coração. (...)

Procurava uma palavra substantiva. Nada de conceitos bonitos que me pusessem a sonhar acordada, sentimental e piegas, naquele engano d´alma que a poesia, às vezes traiçoeira, gosta de alimentar. E as minhas palavras substantivas continuaram a desfilar com pezinhos subtis por cima do meu corpo (..) Vendo que não as escolhia, começaram a despedir-se. Caminho tinha de ir, não era palavra de ficar ali à espera que uma escritora ociosa inventasse um conceito com pernas para andar. (...) Mar estava a ser solicitado por tantos escritores que só lhe restou seguir viagem, não sem antes acariciar areias e agredir rochas que resistiam ao seu abraço(..) Tentei sacudir beijo e música e perfume, mas elas evidentemente ficaram, porque sem elas não seria capaz de escolher palavra nenhuma. Nomeei-as minhas conselheiras para que a palavra escolhida lembre beijos, tenha música e sugira aromas de terra e chuva e flor de laranjeira. (...)

Então reparei que bem ao meu lado, discreta, humilde, feita de barro, estava a palavra cântaro. Esdrúxula e circunflexa sem ser circunflexa nem esdrúxula. Simples sem ser fácil. Antiga e não obsoleta. Que traz no ventre a palavra cantar e ressoa e ressua. Evoca água, fonte, namorados, cantigas ao pôr-do-sol, conversas de mulheres, sede de pássaros. Tem ancas e tem boca e a sua pele é húmida. Vazia, amplia o som. Cheia, dá de beber. E se falares para dentro do seu bojo responde-te segredos. (...) E lá com a canção da água a fecundar-lhe o ventre, cântaro é a palavra mágica, a palavra música, a palavra terra, a palavra escolhida, e agradeço a todas as outras palavras terem-se deixado generosamente convocar para me ajudarem a cantá-la. Cântaro, de barro como eu, é a minha palavra deste dia.


Rosa Lobato Faria
In "A Minha Palavra Favorita", pp.69-72
(Edição de Jorge Reis-Sá, Colecção Soluções, Centro Atlântico, Lda, 1ª Ed. Novembro de 2007)

Sem comentários: